domingo, 2 de fevereiro de 2020

Outro dia uma amiga publicou numa rede social:

"Que tal pararmos pra prestar atenção quantas vezes pedimos desculpas por dia? E destas, quantas achamos que os pedidos tem realmente razão? A gente naturaliza tanto as coisas que sequer percebe o porquê das nossas ações automáticas. Que tal anotarmos num caderninho, pelo período de um mês? Quem topa? Acho que resultado pode ser bem interessante."

Eu não sabia pedir desculpas. Talvez até hoje não saiba fazer isso direito. Pedir desculpas implica assumir o erro, a falha, o tropeço. E não estou sempre disposta a fazê-lo. Posso ter mais facilidade em pedir desculpas quando esbarro em alguém sem querer, quando esqueço de fazer algo que me comprometi em fazer, quando chego atrasada; mas há situações em que a desculpa é quase uma dor pra mim, pois, mais uma vez, implica que eu errei. Fui convencida disso ou é assim mesmo que funciona? A essa altura do campeonato eu já devia saber. 

Pensando no exercício proposto pela minha amiga, comecei a observar a natureza das desculpas que eu pedia. 


Pedi desculpas por estar doente. Por ter feito o almoço. Por não querer fazer sexo. Por não conseguir dormir. Por ter acordado tarde. Por esquecer de contar uma novidade importante. Por sugerir um determinado presente. Por não me sentir confortável em determinado lugar. Por me sentir ansiosa. Por chorar. Por ter sido estúpida num momento de tensão. Por não ter gostado da comida. Por estar cansada demais pra andar. Por passar mal no meio da rua. Por dizer não. 


Eu acho que me sinto constrangida demais pra dizer que a natureza das minhas desculpas, quase sempre, é a de assumir uma culpa que não devia ser culpa. Nós mulheres aprendemos desde cedo que a culpa é nossa. Não importa do quê, a culpa é nossa. 


Não consegui terminar o exercício, mas acho que ele cumpriu o objetivo.

sábado, 1 de fevereiro de 2020

"Você costumava escrever", me dizem.
Não escrevo mais. Não é possível escrever sendo pela metade, tendo meia vontade.
Se eu não puder escrever com liberdade e sem medo de que as palavras sejam navalha na carne de quem as lê, mesmo que o que eu escreva seja sobre mim e não sobre elas, não posso fazê-lo.
Passei muitos anos da minha vida escrevendo sobre todas as coisas que me moviam. Meus amores, minhas saudades, revoltas, ideias, esperanças, decepções. Me despi completamente em palavras. Me derramei escorregadia pelas figuras de linguagem. Escrevi com endereço certo e pra acertar todos os alvos.
Um dia alguém disse que as minhas palavras feriam. Aceitei. Sumi com cada linha escrita, com cada conto e crônica da minha vida, com toda a expressão da minha criatividade. Passei à uma escrita contida,tímida e vaga. Voltei minha preocupação para evitar toda sorte de mágoa e humilhação que os outros pudessem sentir.
Então outro dia alguém me disse que as coisas que eu escrevia publicamente deviam ser ditas pessoalmente. Ditas, não escritas. E foi assim que calei os dedos novamente. Depois, substituí as minhas palavras pelas palavras de escritores de verdade, que escreviam textos e poemas que eu nunca vou escreveria.
Por fim, eu me tornei uma mulher cujas convicções não podiam mais ser expressas em palavras para não correr o risco de que elas fossem enviadas ao endereço incorreto. Os temas mais caros pra mim, como o feminismo e todas as questões que envolvem as relações entre homens e mulheres passaram a não ser mais temas sobre os quais eu podia falar. Achi que foi assim que eu morri um pouco. Quando o medo de não agradar me paralisou.
É a primeira vez que escrevo sobre isso. Com medo de escrever. E escrever com medo é ser pela metade, tendo meia vontade. 

sexta-feira, 27 de abril de 2018

Ilha de calor

Era por volta das 10 da manhã quando cheguei em casa. Um gole longo de água. Subi as escadas até o andar superior enquanto tirava a roupa e largava em cima da cama. 
- Como é quente esta cidade. - Falo pra mim mesma.
Sempre achei que Belém fosse mais quente que Macapá. Deve ser porque, quando criança, ouvi alguém dizer que:
- Belém é uma ilha de calor.
-Ilha de calor?
- Sim. Sabe quando o ar quente fica dentro da cidade? Deve ser por causa dos prédios...
- Ah, entendi. Deve ser mesmo.  
Pesquisei o que é uma ilha de calor. Não é E-XA-TA-MEN-TE isso, mas quase. Então serve, por enquanto.
Quando me perguntam se Belém é mais quente que Macapá, sempre digo que tenho essa impressão, mas que deve ser porque eu me acostumei em morar numa cidade que tem uma orla por onde se pode andar de um lado a outro da cidade vendo o Rio Amazonas, não uma paisagem, mas um elemento que não se pode ignorar. O vento, o som, o cheiro. Tudo que vem dele habita os dias.  
Em Belém, a orla tem portos prédios lojas aos montes. E num lugar ou outro você vê a sombra de um Guamá no fundo e nesse ou naquele lugar é possível sentar à beira do rio. Sinto falta do passeio de carro olhando o rio que quando seca vai longe da margem e deixa nu um chão de areia e lama, com cheiro úmido de água doce e esgoto. 
Não se trata de ser um melhor que outro. Trata-se de que são diferentes, e me despertam diferentemente. 
Também acho Belém mais úmido. E isso acho por causa dos três dias que a roupa leva pra secar, se não chover e ela secar e molhar várias vezes, até perder o cheiro de cachorro molhado, como diria... não lembro exatamente quem.
Foi minha mãe que me chamou atenção pra isso. Sinto saudades de minha mãe. Ela sempre tem um cheiro fresco de pele recém lavada. Sinto falta do som que os passos dela fazem. 
Belém é uma cidade violenta. Não preciso dos dados pra dizer, mas você pode conferir. 
Andando na rua tenho medo de assalto, mas em certo período do ano tenho mais medo de manga. Sim, de uma manga cair na minha cabeça. Acho que uma manga pode matar alguém, ou fazer um bom estrago.
A rua onde moro tem casarões antigos. É a parte velha da cidade. Se eu caminhar pra minha esquerda, até o fim, chego no rio, e no Ver-o-peso. Lá o cheiro é forte de patchuli, maniva e cocô de galinha. Mas não só isso. Cheira a peixe frito, açaí do grosso, farinha baguda. Fala-se alto, é preciso se ouvir entre as bicicletas com alto falantes que tocam os bregas clássicos e vendem pendrives com centenas de flashbacks. - Só os melhores, freguesa!  
Se eu andar pra direita chego ao antigo presídio da cidade. Lá tem loja pra turista, um polo joalheiro e um museu que guarda objetos que os presos usavam pra seviciar os desafetos. Senti um profundo mal estar nesse lugar. Também tem uma capela linda. Deve ser de São José. Curiosamente, padroeiro de Macapá.
Curioso mesmo é que esse texto nasceu não para comparar Belém com Macapá, o que acho tedioso quando me pedem pra fazer. Mas porque acordei de um cochilo inapropriado nessa manhã. Molhada de suor e pensei que Belém era muito quente, e muito úmida, como uma vagina excitada. Ou como várias vaginas excitadas. De tamanhos e formas diferentes. Pingando. Crescendo. Pulsando em gozo frenético e violento. Minha Belém é uma vagina excitada.


 Imagem: Jamie McCartney. O Grande Muro de Vaginas (The Great Wall of Vagina).


quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Tempestade

Quando dorme de dia, fica confusa e com dificuldades de se localizar no tempo. Foi assim que cochilou naquela tarde de dezembro. O corpo queria despertar, mas os olhos se forçavam voltar a dormir. Teve vários sonhos ao longo das horas de sono perturbado. Num deles começava em um novo emprego. O lugar era uma escola de inglês que ficava numa ilha onde só se chegava em botes pequenos que levavam e traziam crianças de galochas coloridas. Ela própria calçava uma. No sonho também uma amiga que não vê há um tempo lhe conseguia a vaga. Trabalharia três vezes por semana e folgaria aos sábados e domingos. Vibrou com isso.
O telefone fez algum ruído e ela abriu os olhos assustada. Esticou os braços pela cama, olhou no rumo da porta do banheiro pra ouvir alguma coisa. Demorou um tempo pra entender que estava sozinha. Fechou os olhos apertando-os e tentou mais uma vez voltar a dormir. Mas o corpo já pedia movimento. Não adiantou pedir. Passou o resto do dia na cama enrolada em lençóis e agarrada aos travesseiros.
Foi assim que passou pelo frio do inverno amazônida. A chuva precipitava de nuvens escuras e pesadas que passeavam em cima da Baía do Guajará. De onde vê o céu da Cidade Velha vê aviões chegando. Nos dedos das mãos contou mais uma vez quantos dias faltavam pra que ela, por fim, pudesse voar até ele.
São dias de ansiedade, mas dias de espera apaixonada também. Lembrou de um poema que escrevera pra ele.

Onze arcanos
Ela é Beatles. Ele é Stones.
Ela é ar. Ele é fogo.
Ela é flor. Ele é árvore.
Ela é lunar. Ele é solar.
Ela é Buarque. Ele é Sampaio.
Ela é chuva. Ele é calor. 
Ela é feminista.
Ele um Marxista tropical. 
Ela escreve cartas. Ele canções.
Ela dança. Ele se movimenta.
Ela é um solfejo. Ele um solo de guitarra.
Ela é passarinho. Ele é ninho.



Pensou:

-Posso acrescentar 

Ela é espera. Ele é chegada.

Ela é brisa. Ele, revoada.

Eles são chuva.

Tempestade.



segunda-feira, 20 de março de 2017

Onde passeiam as rãs

Que seja sempre equinócio nesse hemisfério
Para que os dias e noite sejam igualmente longos
E prolongados também sejam os beijos que te esperam.

Que nos nossos anos existam todas as estações.
O estio para bronzear teu corpo no passeio à beira do rio.
O outono para que as folhas amareladas cubram a entrada da casa.
O inverno para que fiquemos encolhidos um no outro.
A primavera para que floresçam flores no meu ventre.

E que nesse outono austral que começa agora
O frio fique lá fora onde passeiam as rãs de barriga gelada
E aqui dentro sejamos sempre como jacarés
Que na beira do rio que se esticam procurando o sol.

Que a tua pele seja minha escama
Para proteção do pequeno corte ao profundo golpe
Que seja pluma da minha asa em voo pleno
Do gozo lancinante das minhas entranhas.

Que sejamos quentes e úmidos
Caminho fluviais sinuosos
Por entre essa floresta densa
De todos os tons de verde e cor da terra.

#22